Escrito por Saren Camargo
Editado por Iana A.
Preparado por Júlia Serrano
Os barulhos do mato faziam uma parte antiga da mente zunir de aflição. Aquele não era seu lugar. A vontade era de correr de volta pelo muro que tinha pulado e esquecer daquilo.
Não que tivesse para onde voltar.
Mordeu o lábio, tentando respirar devagar para manter a mente calma.
A casa de taipa caiada parecia um fantasma no escuro, e ela podia jurar que os vaga-lumes acompanhavam suas passadas como uma escolta até o momento em que seus pés encontraram o caminho de terra batida que levava até a porta.
Olhou por cima do ombro. A luminosidade dos holofotes na central de distribuição de eletricidade ainda era visível além do muro. Era como se a cidade acabasse ali, uma fronteira muito bem marcada antes do desconhecido.
Tinha mais segurança nos ombros quando continuou andando. Aquela certeza de que não queria voltar atrás, que não havia nada na cidade para ela. Estava cansada de subempregos e olhares tortos, do jeito como desprezavam seu conhecimento e esperavam que se sujeitasse às expectativas daquele mundo cinza. Era quase uma dor física ter que levantar da cama na quitinete, enquanto sentia o cheiro estagnado de cigarro e ouvia os barulhos do viaduto perto da janela, sabendo que havia uma vida além do muro, onde era possível tatear os fios da realidade para conseguir as coisas que queria. Um lugar onde os símbolos que a avó tinha ensinado quando era criança, riscados de giz no chão, teriam um poder muito mais vibrante, onde ninguém questionaria a realidade do seu corpo; havia tanto para viver e fazer além dos muros.
Como tinha ouvido a falecida avozinha contar, empurrou a porta de madeira crua, o gemido das dobradiças cortadas na madeira deixando ver a casinha escura, iluminada apenas pelas brasas do fogão de lenha. Respirou fundo, atravessando o espaço até a porta que dava para o terreiro atrás da casa. Lembrou das casas que visitava quando criança, a avó levando-a pela mão enquanto ia fazer rezas e benzimentos, o frescor da taipa deixando o calor do lado de fora junto com seus medos. Lembrou de cada detalhe que a avozinha insistiu que memorizasse sobre o que fazer se encontrasse aquela casinha que ficava além do muro. Bebeu água da bilha perto da porta para se acalmar, o sabor fresco e argiloso deixando o pensamento mais afiado, a sensação elétrica de seu sangue despertando nas veias, expulsando a vida cinzenta que tinha se entranhado no corpo magro durante o tempo vivido na cidade, enquanto saía para o terreiro de chão batido, onde o café secava ainda, as ervas desconhecidas plantadas por trás da cerca emaranhada de taquara. Ergueu o balde e foi tirar água do poço, ouvindo atenta para ter certeza de que a dona da casa ainda estava longe. Era vital que fizesse tudo o que a avó tinha instruído antes que a senhora da casa voltasse, porque ela podia sentir de longe a intenção de alguém, e podia tirar uma vida com pouco mais de um gesto.
Do jeito que a avó ensinou quando era menina, fez o fogo pegar colocando mais lenha no fogão, com cuidado para não afogar as brasas. O escuro não fugia da luz do fogo, como um tecido que só ficasse um pouco mais translúcido, ainda ocupando tudo.
Encheu a chaleira com a água do poço, achou uma panela e saiu mexendo pelas coisas até ter tudo que precisava. Farinha de milho, leite, melaço. Podia sentir os olhinhos miúdos de tudo que a observava em cada fresta e cada sombra, com uma inteligência que coisinhas pequenas assim não deveriam ter.
O cheiro do mingau de milho se espalhou conforme a colher de pau fazia um som ritmado no fundo da panela de ferro, fofo e perfumado, alimento e memória.
Serviu uma gamelinha para os pequenos espíritos domésticos que a observavam. Era como se de repente a casa a acolhesse.
— Não vão queimar a boca, heim — Enquanto falava, não tinha coragem de olhar o que eram.
A mão tremia quando acendeu uma vela no fogão e foi procurar a cortina que separava o quarto do resto da casa.
Lá dentro, achou com esforço uma lamparina de óleo. Aquela sim dissipava a escuridão, deixando ver a cama simples, a esteira, a mesa de cabeceira, estantes de livros, potes e garrafas. Tentou não reparar em como o corpo da lamparina tinha a forma branca de um crânio.
Mordeu o lábio, procurando, agoniada com o tempo curto que ainda tinha, até achar a vassoura. Varreu, tirou as teias de aranha, bateu travesseiros e afofou a palha do colchão.
Demorou mais do que gostaria para encontrar as coisas de fazer café, a angústia de não terminar a tempo ficando forte no peito.
Sentou-se em um banquinho de três pés perto do fogão enquanto a água fervia, o estojinho de lantejoulas apoiado no colo, contando os comprimidos nas cartelas para saber quantos dias teria antes de precisar pedir ajuda para a senhora da casa para lidar com os hormônios — sabia que teria respostas, porque a senhora entendia das coisas de todas as mulheres.
Tinha acabado de derramar a água quente e as ervas do escalda-pés na bacia quando ouviu barulho lá fora. Pela porta aberta, viu surgir da quina da cerca de taquara um vaqueiro branco, de cabelos brancos, vestido também de branco, em um cavalo pálido, que atravessou o terreiro e seguiu para longe. O coração acelerou, aquela sensação de que tinha visto algo que era um segredo do que existia por trás do mundo comum. O sol nasceu, a casa se enchendo com a luz fosca daquela primeira hora do dia.
Um minuto mais, e a porta abriu.
A moça pulou para o lado da porta, de cabeça baixa, se oferecendo para pegar a bolsa pesada que a velha levava.
— Bença, madrinha.
A velha apertou os olhos, observando a pessoa jovem que estava ali. O short jeans feito de uma calça cortada, a regata grande demais para o corpo magro, as pernas compridas marcadas de arranhões e pancadas. O cabelo raspado curto, as orelhas com furos, mas sem brincos, o rosto desajeitado e áspero de quem mal terminou de crescer e já viu tanta coisa.
— Minha benção, eu acho.
A moça sorriu.
— Essa sua afilhada quis ser útil, madrinha. A senhora deve estar cansada.
Foi guiando a velha desconfiada até a mesa, servindo uma tigela de mingau, trazendo uma caneca de café. Já ia se oferecer para lavar os pés dela quando a senhora estalou a língua, a voz séria dando ordens.
— Pegue a lata de biscoito na prateleira e um queijo.
O coração batia forte de ansiedade enquanto levava as coisas para a mesa. O mingau amarelinho parecia deixar o sol mais forte conforme a velha comia, e o café perfumado parecia levar as sombras para dentro dela conforme ela bebia. Cada mordida nos biscoitos de manteiga parecia levar os barulhos do dia para mais perto.
A senhora tirou a faca do cinto e cortou uma fatia de queijo para si, e outra para a moça.
— Então, minha afilhada quer aprender meu ofício.
Pegou a fatia de queijo branco, que derretia na boca, e soube que não seria capaz de mentir nenhuma vez para a velha, porque a mentira iria derreter do mesmo jeito. Acenou que sim, insegura. A velha puxou sua mão, olhando as linhas com uma expressão fechada, e sabia que cada segredo do seu passado ou futuro eram conhecidos.
— Hum. Vai ter de servir.
A moça sorriu. A velha olhou daquele jeito severo, batendo a mão na coxa.
— Vamos te arranjar um vestido e um lenço para o cabelo. Tem muito trabalho para você aqui em paga do seu estudo, mas ninguém vai dizer que a vovó não cuida das filhas.
A velha levantou, empurrando a caneca de café na direção dela. Bebeu de um gole levantando para seguir sua madrinha, e soube que pelo resto de seus dias, lembraria daquela manhã como a que iniciou seu destino.
Enquanto atravessavam a cortina, no terreiro um vaqueiro vermelho, de cabelos vermelhos, vestido também de vermelho, em um cavalo vermelho, correu estalando o chicote, e lá fora já parecia meio dia.
Saren Camargo
Saren escreve e faz umas bagunças visuais, é professor de arte e agitador cultural para viver - em todos os sentidos da frase. Cria do ABC paulista, vive em São Paulo com seus amores. Queer e trans.
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