Escrito por Luísa Montenegro
Editado por Natalle Moura & Iana A.
Preparado por Iana A.
A última vez que vi mainha comer foi quando apareceu o alienígena na Cidade Livre. Eu era menina ainda, nem um metro e quarenta e cinco do chão. O alienígena era só um pouco mais alto que eu, a pele esverdeada e três olhos cristalinos na cabeça alongada, feito um louva-a-deus espacial.
No auge dos meus nove anos, eu já tinha visto de um tudo atravessando o País na boleia de um caminhão, debaixo de sol e chuva, mainha com o ventre inchado do filho que ficou de pedágio nas estradas sertanejas de terra batida. Tinha visto uma cidade se erguer onde antes era só mato e barro vermelho, erigida nas costas de gente simples, comum que nem eu e você, mas gente que bem podia ser mágica. Eu tinha vida e morte, fome e sede, alegria e tristeza, tudo no repertório comprido de minha curta existência. Por isso, quando vi o recém-chegado, o capacete de aquário translúcido confundindo-se com as linhas curvas de Brasília, compreendi logo que era alienígena. Mas, naquela cidade construída com sangue e concreto, o que não era?
Talvez por isso o povo também não estranhou. Mainha foi quem viu primeiro, pras bandas da Novacap. Vendia os bolinhos que fritava no fundo do nosso barraco na ocupação, a bandeja escorada nos quadris minguantes — naquela época ela já comia bem pouquinho, feito pardal. Disse que viu uma linha riscando o céu e pensou que fosse balão ou estrela caindo. E tu fez desejo, mainha? Perguntei só uma vez, quando o povo arrodeou ela querendo saber da história, mas mainha só me olhou de rabo de olho, o olho fundo de quem viveu muito mais vida do que seus vinte e tantos anos — ela não sabia dizer ao certo quantos —, e eu soube que não. E me calei.
Ei, isso aí não é engenheiro estrangeiro, não? Dona Maria da Venda me atropelou, e o povo debateu a ideia, porque os engenheiros estrangeiros eram tudo esquisito, cruzando o cerrado nuns carrão platinado, gritando ordem de cima das máquinas de construção, falando enrolado, a voz o mesmo que tivesse entornado um litro de cana, as esposas umas galegas varapau, uns galalaus de mulher, as unhas compridas, carmesim, mas de tinta e não de barro feito as mulheres das bandas de cá. Coisa de outro mundo, mesmo.
Mas mainha insistiu que não, que viu a nave-espaço-nave — que era assim que o povo chamava —, que estrangeiro debaixo do sol do planalto ficava de tudo quanto era cor, vermelho, rosa, laranja, mas onde é que já se viu estrangeiro verde? Com três olhos, além de tudo!, e Tia Neiva não dizia que os alienígenas pousaram na Terra pra civilizar a humanidade? Vai que veio ver a cidade nova, ver os prédios, que tudo parecia mesmo espacial. Veio conhecer os habitantes, visitar o povo. Oxi, então é visita ilustre, concordaram — povo esse que, a despeito de levar a construção da cidade no lombo, só tinha visto o presidente umas poucas vezes, e de longe.
Eu me senti uma privilegiada, ainda mais que mainha que tinha encontrado o alienígena, que estava muito ereto ao lado do beliche onde dormia Ramiro mais Zé da Faca, mexendo numa anteninha que saía do capacete de aquário. Seu Alienígena, nessas bandas é pouca estação de rádio que pega, fiquei com vontade de falar, mas, mesmo que ele tivesse orelhas, não achei que ia ouvir, porque o povo tava todo cheio, dizendo bem-vindo ao nosso planeta Terra, o planeta mais bonito do mundo!, e o senhor já viu uma cidade mais moderna do que a nossa?, e esticava a mão, tirava o chapéu, dava batidinha nas costas dele. Na confusão, nossos olhares se cruzaram — a gente era praticamente da mesma altura, o alienígena e eu —, e percebi que ele estava tão curioso quanto o restante de nós.
Depois que eu já era moça e mainha era a dor física de sua lembrança, a memória do banquete do alienígena me voltava nas noites mais solitárias, nas horas infinitas no caixa do supermercado, nos anos-luz balançando em um ônibus até a universidade pública, no coração daquela cidade futurística em forma de avião, alienada no meio do cerrado, alienígena. O local da Terra mais propenso a contatos imediatos de qualquer grau.
Ninguém sabia o que dar de comer pro alienígena, é cafezinho?, é comida de santo?, é comida de festa?, então o povo foi trazendo tudo quanto era comida diferente, oferecendo um pedacinho de sua história. Ali, a gente era quase tudo do Norte e do Nordeste. Tinha gente que era da floresta, da praia e até do meio do caminho entre a floresta e o agreste, dos sertões da caatinha e tinha gente como mainha e eu que tinha descido pra fugir da seca sertaneja. Cada estado do Nordeste nas linhas dos rostos, nos calos das mãos. Em menor número, tinha o povo dali mesmo de Goiás, de Minas Gerais, do Mato Grosso, com sua cozinha mais adaptada ao cerrado, que não é nem Amazônia, nem Caatinga, nem Pantanal, mas que também não deixa de ser.
O povo foi levando mesa, cadeira, tamborete, caixote de madeirite, colocando tudo no centro de uma quadra de esportes onde os mestres de obra e os peões se enfrentavam no futebol. Quem não podia levar um prato levava viola, uma voz afinada, um trago de bebida, e quando a notícia correu, a Cidade Livre toda veio conhecer o alienígena, sentado no centro da mesa coletiva improvisada; mainha ao lado dele, toda prosa, que até sorria — parecia outra pessoa. Pato no tucupi, arroz com pequi, buchadinha de bode, frango com quiabo, o povo apresentava, falando alto e pausado pra ver se o alienígena entendia, e o cabra não quer uma caninha pra descer a comida, não?, e o alienígena pegava o copo de geleia de mocotó com as pinças alongadas, abria a boquinha diminuta e bulia no líquido translúcido com uma língua comprida de inseto intergaláctico, o capacete há muito esquecido, rodando pelas mãos da criançada. Se a comida tinha muita pimenta — Rita era famosa pela comida quente, filha de Iansã com paraense, abriu até restaurante frequentado por político —, ou se a cana era da braba, os três olhos do alienígena lacrimejavam e o povo caía na gargalhada, batia nas costas dele e oferecia farinha ou leite pra quebrar o ardor.
Lá pelas tantas, o alienígena levantou do caixote, meio troncho, meio rindo com a boquinha diminuta, um gel azulado escorrendo do alto de sua cabeça estirada, parecendo bicado e empanzinado, feito o resto do povo no banquete. Então, fez um discurso estalando a língua comprida. Pelo menos, o povo disse que foi discurso, porque entender, entender, ninguém entendeu — mas não estranhou, também, porque naquelas bandas a gente tava era acostumado a ouvir discurso de autoridade que não dizia nada, o mesmo que outra língua. Buliu nuns botões no peito de seu uniforme furta-cor e uma portinhola se abriu, feito ele fosse tronco seco, e da portinhola surgiu um caninho prateado, e antes que o povo pudesse abrir carreira — só o que faltava, o alienígena ser jagunço de fazendeiro ou pior, polícia da Novacap —, o caninho cuspiu um monte de bolhas brilhantes.
O povo bateu palma, a criançada pulando, tentando catar as bolhas, que pousavam em nossos pratos vazios e estouravam, formando uma gelatina esverdeada. É comida de alienígena, é?, o povo torceu o nariz. Vou lá comer isso?, parece nem comida, mangaram, mas mainha levantou a voz, vocês não tem educação?, tem que dar uma provinha pelo menos, senão é desfeita, e levou a colher à boca. O povo todo prendeu a respiração, encarando mainha, que deu sua bicadinha de passarinho e sorriu, confiante. Valente demais, mainha. Tão valente que o povo animou de provar a gororoba, sorrindo amarelo pro alienígena, gostoso, muito bom, exótico, né?, tomando outro trago de cana pra empurrar, deixando o restinho pros cachorros magros da ocupação, voltando à comida do nosso próprio mundo, da nossa própria cidade.
Mainha sorriu a noite inteira e comeu as iguarias que o povo ofertava ao alienígena, ciscando de um prato e de outro, feito o pardal que estava se tornando, e que, em menos de um ano, avoaria pro lado de Nossa Senhora, da qual era tão devota. Se economizava nas porções, esbanjava nos sorrisos. Distribuía elogios ao preparo, ao tempero da comida, ela mesma cozinheira de mão cheia, admirada até naqueles tempos magros dos bolinhos da Novacap. Uma rainha, uma diplomata, a representante da Terra para enviados extraplanetários. Tão valente que desafiou a fome, que desafiou a pobreza. Onde já se viu pobre não querer comer?, o povo maldizia quando ela já estava bem ruinzinha, acamada, porque a crença é que o pobre tem que comer, e comer o que tiver.
Quando mainha se foi, demorei foi tempo pra aceitar. Culpei o agreste, a boleia do caminhão, a desocupação da Cidade Livre, a “Capital da Esperança”, que tinha dado tanta desilusão a ela. Botei culpa até no pobre do alienígena, que naquela noite provou tudo quanto foi prato, compartilhou sua comida extraplanetária — que na boca não tinha gosto, mas que talvez ele gostasse, afinal, nada se compara à comida de nossa própria terra — e até dançou e fez um som de canto esfregando as pinças que tinha no lugar das mãos. Porque foi só o alienígena voltar pra seu planeta de origem que mainha começou a murchar, e aí a memória do banquete ficou assim agridoce.
De um lado, as comidas fumegantes, os cheiros dos temperos se misturando, as vozes tudo se fundindo em risadas, que não têm dialeto nem sotaque diferente.
Do outro lado, mainha.
A comida tem essa capacidade de juntar, de unir, de representar, de tocar até mesmo um alienígena de outro planeta. É o mesmo que um cuidado, um afago na alma, isso eu sabia desde menina. Mas o porquê de mainha se negar esse afago entendi só depois de feita, de formada, professora na universidade que bem lembrava a nave-espaço-nave, lutando contra um golpe, um regime opressor mais alienígena do que o extraterrestre de minha infância. Embora o gosto da revolta fosse um velho conhecido meu, ali, finalmente compreendi o sentimento que levou mainha a definhar. Quando ela se negou a comer e começou a secar por fora, já tinha vivido tanta violência que já estava murcha por dentro.
Então, fiz as pazes com o alienígena e seu banquete. Hoje, tenho filhas que me chamam de mainha, para quem contei a história e ensinei as receitas daquela noite, receitas de todo canto do País que acabaram convergindo na construção dessa cidade, feito o alienígena de minha infância. Minhas filhas recontam e ensinam as receitas para suas próprias filhas, minhas netas, tudo já nascida dessa terra de Brasília. De mainha, guardo a lembrança, já não tão dolorida, e o capacete intergaláctico com o qual o alienígena lhe presenteou antes de partir para seu planeta.
Luísa Montenegro
Luísa Montenegro é autora de A Menina Estrela d’Alva, primeiro lugar no 5º Prêmio Agostinho de Cultura, e de contos nas revistas Trasgo e Escambanáutica. Também é doutora (com doutorado e tudo) em Comunicação. Vive em Brasília com quatro gatos e um marido.
Comments