Escrito por Moacir Fio
Editado por André da Cunha Melo
Preparado em português por Ingrid Pereira
Tia Celinha estava outra vez grávida e por isso passariam mais tempo na casa da avó em Piranji, foi o que a mãe disse, enquanto preparava tudo na noite anterior à viagem. Precisava cuidar da irmã prestes a ter bebê, e Alisson ouviu os gritos do pai através da parede – os palavrões, as ameaças – e quando partiram na manhã seguinte, as malas dele ficaram no corredor. Temia que ele fosse embora novamente e voltasse a ser uma sombra em fins de semana esparsos, mas esqueceu as preocupações quando o mar surgiu pela janela do carro. Até ali, a viagem tinha sido péssima. O irmão, Vítor, chorava o tempo todo perguntando pelo pai, e a mãe aumentara o volume do rádio para disfarçar os próprios soluços. Alisson tinha onze anos e já sabia que algumas coisas são tão complicadas que nem merecem atenção.
Chegaram antes do almoço. Mesmo por trás das nuvens, o sol fazia da rua de piçarra um rio de fogo. As casas se abriam para a praia, exceto a da família, que ficava no fim da vila e se voltava para o morro, invencionice do bisavô, que diziam ter-se amalucado. A avó apareceu no portão para recebê-los, uma mulher que se casara muito cedo e repetia em todo aniversário que aquele seria o seu último.
A casa estava abafada, e a mãe entrou já abrindo as janelas para correr o vento. A avó resmungou da friagem, mas nada fez. Tia Celinha surgiu da cozinha, o barrigão imenso, pedindo abraços. Alisson deu um beijo na tia, perguntou se Marquim estava dormindo, largou as mochilas no quarto e saiu para o alpendre, onde sabia encontrar Dalva.
A prima desenhava com um graveto na areia, debaixo do pé de acerola. Essa daí gosta de ficar no sol, dizia a avó, porque Dalva puxou ao pai, pescador da vila que morrera num acidente logo depois dela nascer. O pai de Alisson repetia sempre: cuidado, que homem naquela casa morre ou endoida.
— Vieram pro fim de semana? — perguntou Dalva.
— Até tua mãe ter o bebê.
— Então vão passar as férias? A gente vai conseguir terminar!
Alisson saiu para o sol e deu um abraço desengonçado na prima. Apesar de um ano mais velha, Dalva era menor. Ficaram admirando o desenho no chão, o pequeno mapa de curvas e as linhas tortas.
— Quer ver como tá ficando a cidade antes de chamarem a gente?
Correram para o morro, rindo e reclamando da areia quente sob os pés descalços, e desceram para o riacho fedido que se arrastava para o mar, com raízes de mangue cruzando a água como dedos de velho. Quando o vento soprava, tudo fedia a ovo podre, e Tia Celinha dizia ser o resto de esgoto da antiga escola. Ali, na parte da lama seca onde dava para pisar sem afundar, era onde brincavam – ali onde não chegavam os siris nem os maruins, onde antes havia pássaros e, agora, silêncio, só de vez em quando quebrado pelo som de algo mexendo na água. Não fosse por Dalva, Alisson admitiria medo.
À distância, viu por entre a folhagem que a cidade crescera. Dalva tinha erguido doze novas casinhas, maiores do que as outras que construíram nas férias passadas, usando gravetos e pedaços de tijolo encontrados na escola. Estavam todas alinhadas umas ao lado da outras em quarteirões e ruas que desembocavam numa avenida principal, interrompida aqui e ali por troncos retorcidos e pequenas pilhas de entulhos. Ele e a prima vinham erguendo a cidade desde o ano anterior, e Alisson ficou surpreso com o tanto que Dalva fizera sozinha e também um pouco chateado. Ao menos, o espaço maior, bem no meio da avenida central, ainda estava livre. Ali fariam o casarão para o homem de lama.
Quando voltaram, a avó esperava à mesa. Ninguém tinha tocado na comida. O cheiro do frango cozido se misturava com o do mingau que Tia Celinha preparava para Marquim, que engatinhava entre os bonecos de Vítor. A mãe pediu que se limpassem, mas um olhar da avó os congelou bem onde estavam. Ela pegava muito pesado com Dalva, talvez porque a prima não tinha pai e morava ali com Tia Celinha, dividindo a casa com persianas sempre abaixadas. Odeio essa bruaca, dizia Dalva, viver aqui é uma merda. Alisson concordava para não a aborrecer, invejando-a um pouco. Quando você se acostuma com o horizonte da praia, o apartamento em Fortaleza parece um caixote sem graça.
Depois do almoço, foi preciso esperar o sol esfriar para voltarem a sair. A mãe os obrigou a levar Vítor, que já começava a bater em Marquim, logo, foram com os brinquedos para a praia, onde o chato poderia correr com sua bola de futebol e não ficaria ouvindo o que planejavam.
— Mãe disse que a tia já escolheu o nome do menino. Vai chamar Antônio, né? Que nem o vô.
Dalva sugou o resto de toddynho pelo canudo e jogou a caixa para as ondas, mas o vento a mandou de volta, fazendo-a rolar sobre a areia.
— Caguei — disse. Não gostava da ideia de ter mais um irmão e já confessara a Alisson acreditar que, fossem só ela e a mãe, conseguiriam sair da casa da avó, quem sabe até morar em Fortaleza. Talvez fosse mesmo verdade, porque Alisson se lembrava de sua mãe falando de arrumar um canto para Dalva e Tia Celinha, um tempo antes da gravidez de Marquim.
— Também não gosto do Vítor — disse Alisson, observando à distância o irmão se jogar na água.
— Só quero ir embora.
— Queria ir junto.
— Pra quê? Tua vida é um sonho.
Alisson escondeu o rosto. Queria ser capaz de explicar de onde vinha a sensação de estar sempre distante e só, como aquilo tinha se acumulado lá dentro, e crescia e virava um troço selvagem que arranhava, que parecia sempre prestes a escapar, atacar e morder. Como, se tinha um quarto com cama, se tinha internet e celular, se a mãe e o pai nunca batiam nele, se até mesmo voltara a ter pai? Mas então, Dalva disse a melhor coisa que poderia dizer.
— Se tu quiser mesmo, de verdade, falo com o homem de lama pra te levar comigo.
Alisson esqueceu dos olhos cheios de lágrimas e sorriu. O homem de lama só falava com a prima, pois Alisson fechava os olhos sempre que ele se aproximava. Acreditava que a criatura não gostava dele, e quem ia gostar de um pivete mimado que só aparece duas vezes por ano, se havia Dalva, corajosa, esperta e boca-suja? Além disso, o homem de lama vinha sempre fazendo um grande esforço, gemendo como se estivesse a ponto de morrer, e parecia muito difícil pedir qualquer favor a alguém assim, no fim da vida.
— A gente só precisa terminar a cidade? – perguntou Alisson.
— E fazer o casarão.
— Isso vai ser difícil.
— O mais difícil era a porta, mas já arrumei. Tá por trás das jangadas velhas, bora lá?
Alisson concordou, mas logo que se levantaram Vítor veio perguntando aonde iam e passou a segui-los aos pinotes. Dalva mandou o merdinha à puta que pariu, e disse a Alisson que ficaria para depois, quando não tivessem mais que pastorear um bebê cagão.
No quarto que dividia com Marquim e Tia Celinha, Dalva mostrou a Alisson as anotações com os ensinamentos do homem de lama. Escondia o fichário dentro da rede, enrolada no armador. Ela reclamava de ter que dormir na rede, as costas doíam, dizia, mas Marquim só conseguia respirar se ficasse deitado de barriga para cima na cama, chiando feito uma panela de pressão até pegar no sono, e a velha nunca que ia comprar um beliche, se nem guarda-roupas tinha no quarto – as coisas todas amontoadas na cômoda velha fedendo a naftalina.
O fichário tinha na capa a foto dos meninos de uma banda de k-pop que Alisson trouxe para Dalva da última vez, cinco anjos de cabelos coloridos, magros e talentosos e incríveis. Nunca que Alisson seria daquele jeito, graças às pernas curtas da mãe e a cara de fuinha do pai, mas ficava feliz só de ver que Dalva colou a imagem com adesivos de coração. As primeiras páginas do fichário eram funkos desenhados com giz de cera, pétalas de bromélias descoloridas, uma asa seca de figuinha-do-mangue ainda com as penas azuladas e uma coleção de unhas roídas coladas com durex. Então, começavam os mapas da cidade e as plantas de quatro ou seis retas de cada casa, e os círculos que seriam praças, e os retângulos compridos que seriam prédios. No papel, a cidade era mais impressionante e também não tinha a sujeira preta da lama nem as folhas das árvores, tudo limpo e óbvio. A letrinha miúda e cheia de curvas de Dalva indicava o que faltava construir e fazia observações: isso vai ser legal, isso tem que ser bem grande, isso tem que cheirar bem... e Alisson achou aquilo um pouco bobo, mas jamais se atreveria a falar.
Ela o impediu de folhear a próxima página.
— Primeiro, tu tem que jurar que vai comigo, se o homem de lama deixar.
— Tá.
— Pela vida da tua mãe.
— Juro.
Então ela deixou que ele visse os rabiscos a lápis, estrelas riscadas várias vezes e um rosto que poderia ser monstruoso ou apenas mal desenhado. Alisson perguntou quem era, apesar de já saber. De quem mais seria aquela cara escura sem olhos e aqueles dentes? E Dalva não respondeu, porque não precisava. Mostrou como tinha que ser o casarão que o homem de lama pediu: três paredes com uma cobertura no topo, galhos, folhas... o que conseguissem. Também deveria ser grande o suficiente para um adulto entrar agachado, e claro que tinha que ter a porta, mas nem precisava de fechadura, só ficar encostada. O casarão seria o coração da cidade.
— A gente tem que cavar um buraco lá dentro — disse Dalva —, não cavar muito, só um pouco, pra marcar.
— Marcar o quê?
— O canto pro túnel.
Pelo túnel passariam para o outro lado, para dentro da cidade com a qual Dalva sonhava desde pequena, muito antes de aparecer o homem de lama e confirmar que era tudo verdade. Ela já tinha certeza que era real, porque sempre que fechava os olhos na rede acordava numa rua cheia de árvores floridas e passarinhos, ou numa pracinha com bancos de cimento e grama e gatos se esfregando em suas canelas. O oposto de Piranji, dizia ela – o oposto dessa vila de merda sem um canto para sentar além das cadeiras bambas dos botecos, um lugar cheio de mato seco e aqueles cachorros magros que seguiam as pessoas para lhes cheirar os fundos. Como Alisson nunca sonhava com nada ou se sonhava esquecia, acreditava em Dalva.
— Por que a gente não dá um nome pra cidade? — perguntou.
Ela apertou os lábios e pareceu gostar da ideia, mas então balançou a cabeça e disse que as coisas se estragam quando a gente dá nomes, como o irmão que ainda nem nasceu e já estava estragado, porque todo nome tem uma história e tudo que tem história fede a coisa podre. Que a cidade ficasse como estava, quando atravessassem o túnel poderiam pensar em alguma coisa, mas até lá nada de nomes mofados, nada de coisa velha, velha, velha, repetiu. Alisson disse tudo bem, mas para isso acontecer, para que fossem juntos à cidade, era preciso antes o homem de lama deixar.
O buraco, cavaram com as mãos, e as paredes em duas semanas ficaram prontas. Custaram a encontrar tijolos mais ou menos inteiros nas ruínas da escola, que não escorregassem quando postos uns sobre os outros, e com os galhos para o telhado também tiveram trabalho, pois chovera no mês anterior e as plantas vicejavam firmes. Pediram na bodega que lhes arrumassem palhas secas de coqueiro, e como ia demorar uns dias, aproveitaram para expandir a cidade até as casinhas quase tocarem a água esverdeada. Mas as palhas chegaram e, por fim, bastava a porta, um tampo de mesa todo roído de traça. Alisson se encheu de farpas ao transportá-la até a cidade e teve que mentir que tinha se machucado no balanço da escola abandonada. As mãos inflamaram e ele passou a noite com febre, a mãe tirando cada farpa à pinça, e a avó deu uma surra em Dalva porque já tinha falado várias vezes: não é pra perambular por aquelas bandas da escola que tá tudo destruído, pedaço de vidro, banda de telha, ponta de ferro, se esse menino cai e se acidenta e tem que ser levado pra Fortaleza, então quem vai cuidar de Célia e de Marquim e do menino pra nascer, tu é que não vai, imprestável, essas coisas caem sempre nas minhas costas.
Quando a avó ficava daquele jeito ninguém podia se meter, então por dois dias só se ouvia mesmo os risinhos de Vítor correndo pelo alpendre e as tosses de Marquim. Na manhã em que Alisson acordou melhor e pediu para sair, a mãe disse que só deixava se levasse o irmão junto e ficassem na praia, nunca mais o morro pros lados do riacho e da escola. Falava sério: olha a surra que tua avó deu na coitada da Dalva, disse. Era óbvio que Alisson não queria que a prima apanhasse de novo.
Não tiveram alternativa a não ser contar a Vítor sobre a cidade. Não falaram do homem de lama nem do túnel, mentiram que usavam as casinhas para brincar de boneca. Ele riu e ficou repetindo: Alisson brinca de boneca, Alisson brinca de boneca, mas logo em seguida pediu para participar. Deram a volta pela praia, acompanhando a margem do deságue até o mangue. Vítor ficou boquiaberto com a quantidade de casinhas se espalhando sobre a lama, de tamanhos diferentes, mas parecidas, e pulou entre as ruas e as esquinas, parando apenas para reclamar do fedor que a brisa levantava da água. Quis entrar no casarão, e como Dalva não deixou, se aborreceu e começou a tentar destruir a cidade, chutando telhados e empurrando paredes. Alisson deu-lhe um cascudo de arrancar choro e o expulsou de volta para a praia, que fosse brincar sozinho. Ele saiu prometendo contar tudo quando chegasse em casa.
— Tem que ser agora! — disse Dalva. — O merdinha vai avisar a todo mundo.
— Mas a gente nem se preparou, se despediu! Dá pra fazer mais casa, também. Tem espaço.
— A cidade tá enorme e o casarão tá pronto. Foi o que ele pediu, não foi? Se a velha ver isso, vai acabar com tudo, e aí nunca mais eu consigo sair daqui. Vou chamar ele.
Apertou a mão de Alisson e começou a assoviar de um jeito que só ela sabia, imitando o canto da figuinha-do-mangue. O sol já se escondia por entre as folhas das árvores quando o vento parou de soprar. Primeiro chegaram as moscas, o zumbido ao pé do ouvido, e depois aquela presença no ar pesado. A boca de Alisson ficou seca como sempre, e como sempre ele teve que fechar os olhos.
Dessa vez tinha algo diferente, porque pressentia o que via, e por isso via mesmo de olhos fechados. Viu o homem de lama se erguer da água e se arrastar em sua direção, o corpo sem forma, o rosto sem rosto. Percorreu as ruas da cidade, cercado não pelas casinhas de Alisson e Dalva, mas por muros enormes de crânios de passarinhos. O chão se movia sob o homem de lama, e Alisson percebeu que os gemidos não eram dele, vinham de baixo, dos pequenos buracos que se abriam a cada passo. Parou de frente para eles, ao lado do casarão, este sim ainda igual, no centro de uma estrada larga, sob um céu cinza como os rabiscos no fichário de Dalva.
— Tu vem? — ela perguntou ao primo.
Ela não via aquela cidade de ossos? Alisson balançou a cabeça negativamente, a boca travada. Se pudesse, dessa vez confessaria o medo. O homem de lama se esticou.
— Tu jurou — disse Dalva, e cresceu aquela solidão feroz na barriga de Alisson, lhe subindo sem controle pela garganta, lhe atravessando os dentes e, por fim, lhe escorrendo pescoço abaixo, pegajosa e fria, misturando-se à urina que já descia pelas canelas até tocar o chão e encontrar a lama, porque iguais se reconhecem. Deixou de ver. A gente tem que correr, pensou, mas a prima já começava a gritar, e então Alisson descobriu que gritos podem ser também uma forma de silêncio. Não ouviu mais nada até os dedos de Dalva afrouxarem e sua mão gelada se deixar largar. Ficou imóvel até a voz de Dalva se desvanecer em seus ouvidos, até o fedor e as moscas desaparecem, até abrir os olhos e ver que era noite e a mãe, a avó e a tia finalmente haviam chegado, perguntando: cadê tua prima, cadê Dalva, cadê minha menina, e empurrarem o tampo de madeira velha para encontrarem o corpo com a cabeça enfiada no buraco.
Alisson passou semanas num hospital de Fortaleza. Todos os dias lhe faziam perguntas e ele repetia a mesma resposta, o homem de lama. Desistiram. Nunca mais retornou a Piranji. Viu Tia Celinha apenas no enterro da avó, e ela não lhe pediu abraços dessa vez. Sabia que todos achavam que tinha sido culpa dele, era o que a mãe pensava quando dizia tua priminha está com Deus, ou quando o pai repetia que a casa era amaldiçoada, ou quando Vítor se negava a dormir no mesmo quarto que ele. Não importava. A angústia se fora por inteiro, e Alisson tinha espaço dentro de si para construir e toda noite se deitava ansioso para fechar os olhos, encontrar Dalva e dar as mãos e passear com ela pelas ruas repletas de árvores e flores e pássaros de lama.
Moacir Fio
Moacir Fio é de Fortaleza, Ceará, onde vive com a esposa, quatro gatos e um jardim. É escritor, músico, editor e professor.
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